terça-feira, 7 de outubro de 2008

morrer sem dinheiro, em Portugal

Ana Paula tinha 45 anos quando lhe foi diagnosticado um cancro no esófago, em Março de 2007. Internada no Hospital Garcia de Orta, em Almada, foi submetida a intervenção cirúrgica que decorreu com alguns problemas. Questões que só os próprios médicos poderão esclarecer, levaram a que uma bolsa de sangue se lhe alojasse no pulmão esquerdo, sendo necessário induzir-lhe o coma. Na unidade de cuidados intensivos, e já na posse das suas faculdades, afirmava ter assistido a relações que raiavam a promiscuidade entre pessoal das equipas médicas e elementos das agências funerárias, sempre de sobreaviso para qualquer óbito que ocorresse. Temia pela sua vida ao manter-se na Unidade de Cuidados Intensivos daquele hospital.

Foi-lhe dada alta clínica mas a dificuldade em se alimentar manteve-se. Veio para casa débil e nunca recuperou. Nas várias consultas que fez, no Hospital Garcia de Orta, nunca aceitaram interná-la por forma a que fosse alimentada. Nunca houve um cuidado específico relativamente ao seu estado físico depauperado. O diagnóstico era de que o tumor se tinha alastrado a toda a zona abdominal. Um médico particular, depois de analisar a situação, não conseguiu entender o motivo de tal diagnóstico, nem pelos exames que haviam sido feitos, nem pela apalpação. O seu estado era sim, em 21 de Setembro de 2008, de caquexia profunda.

Foi escrita uma carta pelo clínico solicitando o internamento da paciente e que lhe fosse ministrada alimentação através de sonda. A reacção da médica assistente à carta foi: “este médico pensa que esta senhora não está a ser tratada!”.
Colocaram-lhe a sonda mas para ficar internada, teria de se manter nos corredores das urgências, uma vez que, afirmavam, não existiam camas vagas. Só quem nunca esteve nas urgências desse hospital, onde as macas se batem agitando os doentes, poderia aceitar deixá-la internada nessas condições. À sonda, ela própria a retirou, uma vez que nem houve a preocupação de lhe prender as mãos.

Começou então o périplo para tentar a todo o custo internar alguém que, além de um cancro, os médicos tinham deixado chegar a um estado crítico de fraqueza física. O Instituto Português de Oncologia parecia ser o mais adequado. Chegada às urgências em ambulância, nem olharam para a paciente ou para qualquer dos papéis que a acompanhavam. A resposta foi: “Não está aqui inscrita, não poderá ser internada”. Voltou para casa.

De Santa Maria, do Núcleo de Doenças Alimentares, sabia-se que a aceitariam se um médico a declarasse com Anorexia Nervosa. Todos sabiam que anorexia sim, nervosa não. Tentou-se, contudo. A sua médica assistente, no Garcia de Orta, que continuava sem camas livres, não colocou quaisquer entraves a declará-la anoréctica o que, aliás, era óbvio. O clínico substituto do médico de família chega ao ponto de afirmar que “estamos todos a sacudir responsabilidades”. Pergunta para que hospital querem que escreva a carta, provavelmente ciente de que a mesma iria embater em mais uma barreira burocrática ou no corporativismo da classe médica. Santa Maria, foi a escolha: Núcleo de Doenças Alimentares. Vista pela Doutora Dulce Bouça, esta declarou o óbvio: não se tratava de uma anorexia nervosa, não poderia ficar naquele departamento clínico, sendo necessário que voltasse para o hospital da zona de residência.
Mas eis que alguém fez algo que, num ano, ninguém tinha feito. Dulce Bouça telefonou para o Hospital Garcia de Orta. O apelidar de incompetentes aos médicos do hospital de Almada ouviu-se na rua, como a ameaça de fazer queixa ao Ministério da Saúde se nada fosse feito em relação àquela paciente. Escreveu uma carta com três páginas, a ser entregue no hospital da residência.

Miraculosamente, ao voltar ao Garcia de Orta, havia uma vaga em oncologia. Já lá dentro, descortinavam-se quartos vazios. Era dia 26 de Setembro, à tarde. Foram necessários 5 dias e a intervenção de uma médica sem medos para a aceitarem em qualquer estabelecimento hospitalar.
A tão pretendida sonda, só seria possível segunda-feira, dia 29 porque, à tarde, já não há médicos e, ao fim-de-semana, só enfermeiros ou auxiliares.

Mas segunda-feira era tarde para a Ana Paula. Quando a família chegou junto dela, já não falava e apenas o oxigénio a auxiliava a respirar. Restava esperar que o seu coração falisse.

Ana Paula morreu a 30 de Setembro de 2008. Não de cancro, como seria de esperar, mas de caquexia profunda. Aos médicos que a assistiram, não foi pedida qualquer responsabilidade.

Quantos mais irão morrer, no Hospital Garcia de Orta, ou noutro, vítimas da incúria dos clínicos que, corporativamente, passam impunes? Basta rotular um paciente de canceroso de tratamento difícil e mandá-lo para casa, definhar.

Será caso para investigar? A família da Ana Paula não quer falar. Acredita que nada pode fazer para mudar o estado da saúde em Portugal e, neste momento, apenas quer sofrer em paz.

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