domingo, 31 de agosto de 2008

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Paolo Pellegrin Olhando o sofrimento dos outros (nos olhos)

30.08.2008, Kathleen Gomes


O seu trabalho está muitas vezes próximo da morte, mas isso não o tornou um cínico ou um duro. De tanto olhar o sofrimento dos outros, Paolo Pellegrin está cada vez mais sensível


O italiano Paolo Pellegrin é um fotógrafo transcendental. Ele tem estado onde todos estiveram nos últimos anos - Iraque, Israel e Palestina, Darfur, Kosovo, Afeganistão, Líbano, Indonésia pós-tsunami - mas quase sempre conseguimos distinguir uma imagem de Pellegrin das outras. É fácil: é aquela que nos faz parar.
As suas fotografias são menos sobre conflitos isolados do que um ensaio sobre o coração das trevas da humanidade. Têm a força da alegoria e, por vezes, ressonâncias bíblicas.
Alguém o definiu assim e é bem visto: "A nossa sociedade está cheia de ruído visual. A diferença está em ser-se um pouco silencioso. Paolo não enche as suas imagens de ruído fotográfico."
Membro da Magnum desde 2005, Paolo Pellegrin é um dos fotógrafos presentes no mais importante festival europeu de fotojornalismo, o Visa Pour L'Image, que começa hoje a sua 20ª edição, em Perpignan, no sul de França. A sua exposição, The Iraqi Diaspora, mostra uma série de fotografias (duas delas reproduzidas nestas páginas) que fez entre Março e Abril deste ano, na Síria e Jordânia, junto de refugiados iraquianos - calcula-se que existam mais de dois milhões de pessoas deslocadas, em consequência da guerra.
Vencedor dos mais prestigiados prémios de fotojornalismo, incluindo oito World Press Photo e a Robert Capa Gold Medal em 2006, Pellegrin, 43 anos, falou com o P2 ao telefone, a partir de Roma.
A cobertura fotográfica do Iraque nunca foi tão discutida como agora: há cerca de um mês o New York Times dava vários exemplos de como o exército americano controla os fotógrafos embedded [integrados em unidades militares] de forma a evitar imagens fortes da guerra. Alguma vez sentiu esse tipo de constrangimento?
Nunca trabalhei embedded, muito menos no Iraque. Quando foi a invasão decidi ir para lá de forma autónoma, portanto não sofri desse problema.
Nos primeiros anos ainda era relativamente possível trabalhar no Iraque sem ser embedded, depois isso tornou-se virtualmente impossível.
É mais difícil hoje do quem 2003?
Sim. Hoje não é possível andar nas ruas, à excepção do Curdistão iraquiano.
Numa entrevista a Christopher Morris [P2, 05/04/2007], que esteve no Iraque em 2003, o P2 perguntou-lhe se essa guerra era diferente das que tinha fotografado nos anos 80 e 90 porque as suas imagens mostravam um conflito aparentemente mais limpo - não havia sangue, não havia mortos - e ele disse que tinha material muito mais violento mas os editores da revista Time, para onde estava a trabalhar, não estavam interessados em publicá-lo.
É inteiramente possível. Posso dizer que estive lá mais ou menos na mesma altura, a fotografar para a Newsweek, e publiquei imagens que eram bastante explícitas, que muito claramente retratavam a morte. Claro que sabemos que quase não existem fotografias de soldados americanos tombados, nunca vemos os seus corpos nem sequer os caixões. Por um lado, sim, há um controlo mas, por outro, esse filtro tornou-se a única forma de documentar o conflito no Iraque porque é demasiado perigoso e virtualmente impossível fazer de outra maneira.
A cobertura que nos chega do Iraque é ou não um retrato asséptico da guerra?
Em alguns aspectos, sim, sobretudo no que diz respeito a baixas americanas.
Quais são as maiores dificuldades que um repórter fotográfico enfrenta hoje?
O mundo pós-11 de Setembro é muito diferente e mais complicado para um fotógrafo ou um jornalista trabalharem. O Médio Oriente, em particular, tornou-se muito mais perigoso, especialmente para um jornalista ocidental. Somos cada vez mais vistos como brancos, cristãos... Não carregamos uma arma, e sim uma caneta ou uma câmara, mas não deixamos de ser vistos como pertencendo ao outro campo. E há outras dificuldades, mais de ordem ética: estamos sempre a lidar com o sofrimento das pessoas e a morte. O que é qualquer coisa de muito delicado, muito frágil. Já faço isto há alguns anos e fico cada vez sensível à dor dos outros.
Não se habitua a isso, antes pelo contrário.
Não nos tornamos cínicos nem nos habituamos, é o oposto. E cada vez mais questiono o nosso papel - o meu pequeno papel, pessoal, mas também o papel maior implícito no fotojornalismo. Não há respostas fáceis, é uma questão permanentemente em aberto.
A fotografia de guerra é potencialmente repetitiva: todos estamos à espera que seja um inferno, os temas são mais ou menos os mesmos em qualquer guerra, há qualquer coisa de intemporal num conflito. Como é que se diz às pessoas: "Olhem para esta guerra" quando elas já foram expostas a tantas fotografias desse género? A única forma de conseguir que prestem atenção é chocá-las?
Não sei se o meu papel é necessariamente chocar ou captar a atenção das pessoas... Como diz, qualquer conflito tem aspectos universais que se repetem. Sofrimento é sofrimento, uma mulher que segura uma criança morta desperta as mesmas emoções, seja na Palestina, no Iraque ou no Cambodja.
A maneira de retratar isso também é mais ou menos a mesma.
A fotografia é obviamente inspirada pela pintura. Pertencendo ao mundo ocidental, usamos uma iconografia que é muito religiosa, que pertence a uma tradição de dois mil anos a olhar e pensar segundo esse paradigma. Dou comigo muitas vezes a pensar em cruzes, por exemplo. Ou na deposição...
Mas, estando consciente dessas pré-determinações visuais, também deve sentir vontade de lhes escapar.
Sim. Quanto mais conscientes estamos delas, menos controlados somos. E assim podemos tirar mais partido ou quebrar essas influências. É um processo constante na vida de qualquer fotógrafo. Para mim, está sempre a mudar. Concordo consigo: há qualquer coisa que é sempre a mesma e universal. Mas de cada vez que vou para algum lugar sou uma pessoa diferente. Algumas das minhas experiências passadas, os livros que li, os filmes que vi, a poesia que me passou pelas mãos, ou simplesmente a vida, as pessoas que amo - tudo isso está lá e é transformado em fotografia. A fotografia não é mais do que uma expressão visual dos nossos pensamentos e de quem somos num dado momento.
Ela é tanto sobre as pessoas que fotografa quanto sobre si próprio, portanto?
É uma relação entre o que retratamos, entre a situação que temos à nossa frente e nós próprios. Caso contrário, eu não passaria de um robô. É isso que a torna extraordinária: é um encontro com esse outro indivíduo que nunca vi e que se calhar não voltarei a ver. Nesse momento qualquer coisa acontece e apesar das barreiras culturais ou linguísticas, há uma comunicação ou uma comunhão.
Jean-François Leroy, director do Festival Internacional de Fotojornalismo de Perpignan, diz que se uma fotografia de guerra for considerada uma fotografia bela, então é porque está errada. Concorda?
Não me parece que concorde. Composição e forma são os instrumentos que temos para transmitir significado e informação. Portanto, nunca fico ofendido com uma fotografia bela, mesmo que retrate uma circunstância dramática. Quando muito, acho que é sinal de que está ali um bom fotógrafo. Acho que é uma forma de respeito tentar fazer o melhor que se pode com os instrumentos que a fotografia oferece. Pode ser controverso, mas acho que existe beleza em tudo. Até na guerra. A guerra é um lugar especial onde encontramos emoções humanas extremas, tudo atinge a sua máxima expressão: o pior, mas também o melhor. Não ter isso em conta é uma grande perda. Sei o que Leroy quer dizer e julgo que a intenção é boa, mas é mais complexo do que isso. Parafraseando um dos meus mentores, Ferdinando Scianna: uma boa fotografia não faz do mundo um sítio melhor mas uma má fotografia torna-o pior. Não me ofende mesmo nada que um fotógrafo tente tirar o maior partido da sua linguagem para criar uma imagem estética de uma situação dramática. Essa beleza estética é uma das formas que temos, enquanto fotógrafos, para tocar os outros, para comunicar.
Disse uma vez que fica sempre espantado pelo facto de as pessoas aceitarem que faça parte da dor delas. Susan Sontag escreveu em Olhando o Sofrimento dos Outros: "as vítimas estão interessadas em que os seus sofrimentos sejam mostrados".
É importante documentar, criar registos visuais de acontecimentos e inumanidades. Se daqui a 50 anos surgir um historiador revisionista a dizer que os campos de concentração nunca existiram, há fotografias que atestam a existência deles - para dar um exemplo num milhão. Sim, até certo ponto é possível que as pessoas tenham o desejo de ser fotografadas numa situação de sofrimento.
Alguma vez se inibiu de fotografar alguma coisa ou de mostrá-la mais tarde?
Tantas vezes. Tenho toda uma galeria de imagens na cabeça de situações que vi mas que não fotografei. Por uma razão ou outra, não consegui fazê-lo. Principalmente por pudor. Às vezes forço-me e consigo ultrapassar esse pudor. O importante é fazer o trabalho com humildade, e tentar ser o mais respeitoso possível. Nem sempre é fácil. Penso sempre: e se um grupo de desconhecidos com câmaras resolvesse aparecer no funeral do meu pai?
Qual foi o seu trabalho mais difícil até agora?
Depende do ponto de vista. O conflito no Líbano, há dois anos, foi muito duro pessoalmente, fui ferido. Durante a invasão do Iraque em 2003, pela maneira como escolhi trabalhar, sem ser embedded, dei por mim em situações terríveis. Cobrir a Palestina, onde estive umas 30 vezes nos últimos 15 anos, é uma constante mortificação do espírito, porque de todas as vezes que se volta as coisas parecem ter piorado. É muito deprimente e triste, e não passamos de uma testemunha de qualquer coisa que não melhora, pelo contrário. E vemos as mesmas coisas acontecerem, os mesmos mecanismos, as pessoas de ambos os lados a ficarem mais radicais e mais cegas em relação ao outro lado.
O que aconteceu no Líbano? Foi ferido como?
Eu estava no sul do Líbano, numa cidade chamada Tiro. Havia um recolher obrigatório de 24 horas, imposto por Israel. Um homem foi atingido por um míssil israelita, e eu estava muito perto e corri para ele 30, 40 segundos após a explosão. Ele não estava morto, porque eu podia ver que respirava, mas estava a morrer. Ia aproximar-se quando outro míssil foi disparado e caiu no mesmo lugar, acabando por matá-lo. Houve uma grande explosão e imensos estilhaços, fui atingido na cabeça e sofri uma concussão cerebral. Tive muita sorte em sobreviver. O que só se deveu ao ângulo em que o míssil caiu, porque projectou a maior parte dos estilhaços para longe de mim. Foi um dia mau, mas ao mesmo tempo tive bastante sorte.
Alguma vez sente medo?
O medo faz parte da experiência, é qualquer coisa com que se lida todos os dias. Sempre que se toma uma decisão, ele está lá. E é bom tê-lo porque nos mantém alertas e vivos. Num conflito todas as decisões podem ter uma repercussão fatal. Devo viajar naquela estrada ou não? Devo virar à esquerda ou à direita? Quem é que vou encontrar depois daquela colina? Será que esta estrada está minada? Aprendemos a conhecer-nos um pouco melhor e a puxar-nos até ao limite. Às vezes acontece dizermos: "Este é o meu limite, não passo deste ponto." Outras vezes julgamos ter atingido o limite mas continuamos. Porque sentimos que temos de o fazer, porque o impomos a nós próprios.
Ao primeiro olhar, é muitas vezes difícil dizer o que as suas fotografias representam, porque estão desfocadas ou imersas em negrume. Elas incitam o espectador a aproximar-se, a olhar mais profundamente, para tentar descobrir o propósito e o significado da imagem. Uma espécie de cherchez la photographie.
Fico contente que diga isso porque a ideia é que o espectador complete as imagens. Como se elas estivessem inacabadas, deixando uma porta aberta para o espectador poder ter o seu próprio espaço. É a ideia de que a fotografia é uma mão, uma dádiva: "vamos juntos para ali" em vez de "isto é assim". Há imagens muito belas e articuladas de autores que respeito mas que nunca deixam que o espectador penetre ou se envolva de forma profunda. Para mim o mais interessante é a perspectiva de comunicar com alguém que não conheço necessariamente. Idealmente, quero dar-lhe os elementos para ele se questionar da mesma maneira que eu me questiono quando sou confrontado com aquela experiência.

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